quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Muniz Sodré e a cultura do sentir


Vivemos a era da cultura do sensível, em oposição ao paradigma anterior, que era a cultura da representação, afirmou o jornalista, escritor e professor da UFRJ Muniz Sodré, ao participar em 3 de setembro de 2004 de um Evento Especial no Salão de Atos da PUCRS (Porto Alegre), durante o 27º Congresso da Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação). A seguir, algumas das principais idéias expostas por Muniz no encontro e numa mini-coletiva posterior:

Chico Buarque - Chico é uma das pessoas mais discretas e talentosas que esse país tem. E tem horror a ser imagem pública. Ele teve desavenças com a TV Globo, não queria aparecer, não gosta de ser alvo de atenções. Mas ele não é dono de sua imagem, a imagem de quem quer que seja é social. Por isso, quando passeia no Leblon e passa por uma fila, é natural que as moças o olhem, achando-o bonito, e os homens o refiram como talentoso.

Espetáculo - Dificilmente se encontra o conflito como tensão social no espetáculo, por isso o consideramos tão sedutor. Essa palavra vem do latim espectaculum, conceito que inclui cena e público juntos. Eles não eram pensados como coisas separadas, o que volta a ocorrer com força hoje. Não há como separar a TV do seu público, como alguns pensam ser possível. A grande lei social é a da imitação. As crianças sempre imitaram os mais velhos, e também sempre tiveram horror a serem imitadas pelas outras crianças. Hoje tendemos a imitar os modelos que vemos na televisão. A TV que assistimos é lixo cultural reciclado.

Esvaziamento político do espaço público - Durante séculos, a religião colocava a esperança de uma vida melhor para a humanidade apenas no Paraíso, após a morte. No século XIX, essa esperança passou a ser canalizada para a atuação política: era possível os homens se mobilizarem e construírem um mundo melhor aqui mesmo. Continuava no ar, porém, uma idéia de espera. Hoje, a mídia apresenta um discurso de levar o melhor para dentro da casa de todos, aqui e agora. Isso leva a um esvaziamento político do espaço público. Nos comícios, ninguém se interessa mais pelo discurso do político, e sim pelo artista que vai cantar.

Música - A música não significa nada. São sons. O que quer dizer (uma sinfonia de Ludwig van) Beethoven? Dessa ausência de referência a assuntos externos a ela vem a grande força da música.

O axé da voz do Papa - Forma e conteúdo estão se dissociando cada vez mais fortemente. Isso por si só não é negativo, mas é um dado a considerar. As letras das músicas do Djavan não fazem sentido. Outro exemplo: nos concertos de rock, o jovem se interessa em ir, ver o artista, paquerar as meninas... Todos cantam juntos, mesmo que a letra seja em inglês e ninguém entenda nada. É a questão do estar junto que prevalece. Mais um exemplo: quando o papa João Paulo II esteve no México (em 1979), os camponeses pediram que ele discursasse; ele não aceitou, porque não havia preparado nada em espanhol. Mas eles responderam que poderia ser em polonês mesmo - não havia um interesse NO QUE o papa iria dizer, e sim em estar OUVINDO a voz do papa. Nas culturas afro, essa é a base do conceito do axé, o contato. Os camponeses queriam o axé da voz do papa.

Venda da virgindade - As pesquisas mostram que a audiência dos programas de auditório não varia conforme o assunto tratado (conteúdo). Quem vê o programa da Luciana Gimenez (Superpop, na Rede TV!) se liga na apresentadora bonita (forma). Outro dia, vi um programa dela em que uma moça vendia a virgindade por 100 mil reais. Várias senhoras telefonaram reclamando, pasmem, que a moça estava se supervalorizando, diziam: "Quem ela acha que é?". Ninguém questionou o gesto em si, o que talvez acontecesse se o valor fosse uns 5 mil. Eu esperei um escândalo, e o único escandalizado fui eu, pela falta de escândalo do público.

Baixaria - Não acho que ficar fazendo campanha contra a baixaria na TV resolva alguma coisa. Deixa a baixaria ser baixaria! O que precisamos é investir em educação.

Escola do futuro - A educação daqui para frente precisa garantir quatro tipos de aprendizado para seus alunos: 1º, que eles aprendam a aprender (deixar a mente aberta); 2º, aprendam a fazer (técnica pode não ser o essencial, mas tem relevância); 3º, aprendam a estar junto (cada vez mais vivemos isolados); 4º, aprendam a aceitar (não basta dizer que respeita o diferente). Aquele que, sendo branco, se diz contra o racismo mas evita a todo o custo a convivência com pessoas negras não está realmente aceitando o diferente.

Racismo - No Brasil, temos essa uma coisa curiosa: temos grande parte da população negra, mas isso não aparece na representação. Basta lembrar o que se comentou quando Taís Araújo estrelou Da Cor do Pecado (TV Globo), quando se ressaltou que pela primeira vez uma atriz negra protagonizava uma telenovela (OBS: a verdadeira primeira vez foi em 1995, com Xica da Silva, na TV Manchete, também com Taís Araújo. O SBT reapresentou esta novela em 2005). Nos Estados Unidos isso é normal. Você vai fazer um filme, uma peça que apareça o presidente dos Estados Unidos, o papel pode muito bem ser feito por um negro. Por que não? Aqui, se uma peça tiver aparição do presidente, o papel irá para um branco, sob alegação de que "não tivemos nenhum presidente negro". Mas se o teatro é um espaço da imaginação, por que logo nisso você precisa ser naturalista? Quanto a não ter presidente negro, também não é verdade: Nilo Peçanha (presidente de 1909 a 1910) era negro. As fotografias eram retocadas para que isso não fosse percebido.


Por Fabio Gomes

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